No laboratório da América Latina

«O Brasil está numa encruzilhada e<br> terá de escolher o caminho»

Anabela Fino
Entrevista com Jerónimo de Sousa, Secretário-geral do PCP No laboratório político que é a América Latina, com todas as suas contradições e complexidades, o Brasil está hoje numa encruzilhada e vai ter de decidir qual o caminho por onde quer seguir. Quem o afirma é Jerónimo de Sousa, Secretário-geral do PCP, que recentemente visitou aquele país. Os importantes progressos sociais registados no segundo mandato do governo Lula, em que participa o PCdoB, não iludem a questão de fundo com que se debatem as forças políticas progressistas brasileiras: sem pôr em causa o sistema capitalista não há solução para os problemas a que têm de fazer face.

«São indispensáveis fortes partidos comunistas para fazer face aos desafios que se colocam»

Acabas de regressar de uma viagem ao Brasil a convite do Partido Comunista do Brasil (PCdoB); recebeste recentemente o Secretário-geral da Fretilin, Mário Alkatiri; foste à África do Sul e a Angola. A que se deve este intensificar da actividade internacional do Secretário-geral do PCP?

Esta actividade deve-se às relações bilaterais e multilaterais muito vastas do Partido Comunista Português no plano internacional. Pelo seu papel, pelas suas análises, pela sua acção o PCP é um partido respeitado e de referência para muitos partidos comunistas e também para outros partidos progressistas e forças de esquerda. Por outro lado, esta actividade visa permitir que o nosso Partido tenha conhecimento de realidades muito diversas, de processos de grande complexidade e diversidade de modo a fazer uma avaliação do mundo em que vivemos, da actual correlação de forças, de modo a validar aquela tese congressual de que ao mundo e aos povos se colocam hoje grandes perigos e ameaças, mas simultaneamente grandes potencialidades no desenvolvimento progressista do nosso planeta. É assim que, com esforço da nossa parte, procuramos corresponder aos convites e iniciativas em que somos solicitados a participar.

O programa da tua visita ao Brasil foi particularmente intenso. Que balanço fazes dessa iniciativa?

O balanço, ainda que provisório, pode sintetizar-se em três aspectos. Em primeiro lugar, esta foi uma visita que permitiu o aprofundamento das relações com o PCdoB; em segundo lugar, possibilitou um melhor conhecimento da realidade brasileira e de todo o processo que está em desenvolvimento; em terceiro lugar, deu-nos possibilidade de expor as posições do nosso Partido em relação a questões como o desenvolvimento do processo da União Europeia, o nosso ponto de vista sobre a problemática da alternativa política e a política alternativa, e a avaliação no sentido em que vai o mundo, designadamente a evolução na América Latina, que é hoje um grande laboratório.
Durante esta visita tivemos uma grande diversidade de contactos, quer a nível partidário quer institucional, incluindo a Presidência da República, a Câmara dos Deputados, o Senado, bem como com as forças que sustentam o governo de Lula. Tivemos também oportunidade de nos encontrarmos com Oscar Niemeyer. Valorizamos muito esse o encontro, muito fraterno, muito solidário, que nos impressionou pela capacidade desse homem, desse comunista, que com 100 anos de idade mantém uma visão internacionalista muito interessante, para além de uma grande admiração pelo PCP face ao seu papel e coesão.

A participação do PCdoB no governo, a exemplo do que sucede ou sucedeu com outros partidos comunistas noutros países, está longe de ser pacífica. Como é que um partido que advoga a liquidação do sistema capitalista pode participar num governo que, apesar de algumas preocupações sociais, contribui objectivamente para perpetuar e mesmo branquear esse sistema?

Creio que neste segundo mandato do governo de Lula tem havido evoluções que, sem retirar ou eliminar as contradições que colocas, necessitam de uma avaliação mais rigorosa. Obviamente que para o PCdoB, um partido que pela sua identidade, pela sua natureza, pelo seu próprio projecto de transformação social, não é fácil participar como força apoiante do governo de Lula, tanto no plano institucional como pela participação ministerial. Durante as conversações ao mais alto nível com o Secretário-geral e uma importante delegação do PCdoB, constatámos que o partido não abdica de uma intervenção no plano de massas e da luta de massas, de uma concepção revolucionária, simultaneamente com a sua participação institucional. Sentimos que não é fácil articular tudo isto, mas no entendimento da realidade brasileira em relação ao governo de Lula, particularmente neste segundo mandato, mais do que a avaliação do seu posicionamento ideológico há um elemento que pesa bastante, que é aquilo que ele representa em termos de valores, de justiça social. A este aspecto junta-se um outro elemento, que é uma concepção de defesa da soberania nacional, muito ligada à solidariedade com outros povos da América Latina.
É bom ter presente, por exemplo, que o Brasil é hoje o primeiro parceiro de Cuba, não numa vertente assistencialista mas através do envio de tecnologia muito avançada, da disponibilização de instrumentos virados para o desenvolvimento de Cuba, a par de uma exigência de não interferência dos EUA em relação à soberania brasileira.
Temos igualmente de ter presente que estamos a falar de um continente, em que o processo de combate à pobreza e à exclusão social, com um poderoso investimento público, visando integrar na sociedade centenas de milhares de brasileiros que viviam numa situação extrema de pobreza, tem um grande impacto.
Não é de subestimar também o aumento significativo do emprego e, ao mesmo tempo – os números foram avançados na altura em que lá estivemos – do crescimento económico em 5,8 por cento, o que já não sucedia há décadas.

Sem subestimar de modo algum o impacto dessas medidas, quer no imediato quer em termos de futuro, continuo no entanto a questionar-me qual o seu real alcance em termos de evolução social quando em cima da mesa não está a questão do controlo dos meios de produção, a redistribuição da riqueza. Sabemos que o Brasil é um dos países do mundo com maiores desigualdades sociais. A pergunta é se essas medidas, por maior impacto que tenham, não são paliativos para a manutenção do sistema que é o gerador dessas mesmas desigualdades.

Para essa pergunta, de grande profundidade e complexidade, não há uma resposta rigorosa nem meramente conjuntural. Nós próprios fizemos notar essa contradição, durante as conversações que mantivemos. Quem detém os principais meios de produção? Quem determina a política económica do país?
Um outro elemento de grande complexidade tem a ver com o carácter heterogéneo, no plano ideológico, das forças que apoiam o próprio governo. Creio que neste momento se poderia dizer que o Brasil e o governo se aproximam de uma encruzilhada em que vão ter de optar pelo caminho a seguir.
Notámos, durante a visita, que existe um esforço muito grande por parte do governo brasileiro para incentivar a produção nacional e o aparelho produtivo nacional. Sem se livrar das pressões das multinacionais, que naturalmente existem, o governo está a fazer um esforço claro na valorização do capital brasileiro, do desenvolvimento do aparelho produtivo, o que obviamente não invalida a questão central que colocas: quem detém o poder económico?
Aliás, há um outro elemento que nos impressionou muito, que é o papel da comunicação social dominante no Brasil. Os grandes grupos económicos e algumas seitas religiosas mandam nos média; não há televisão, nem rádios, nem jornais públicos. Estão todos nas mãos do capital privado e manifestam no plano político, no plano ideológico, no plano social uma hostilidade tremenda em relação ao governo e às suas medidas. Não é um obstáculo pequeno, tendo em conta as próprias contradições da sociedade brasileira. As notícias estão centradas em dizer mal do governo e de Lula, em falar da corrupção, da violência e da criminalidade. O PCdoB quase não tem voz na comunicação social.
Por isso é de admirar muito que Lula, pelo que representa, insisto, tenha neste quadro o apoio da larga maioria do povo brasileiro.
Em síntese, há uma questão por resolver. Existe um capital de esperança, partindo daqueles níveis que referi: situações de desigualdades muito grandes, uma sociedade muito violenta em termos de criminalidade e de insegurança, um poder económico muito concentrado nas mãos dos poderosos nacionais e multinacionais. A questão está em saber qual vai ser o desfecho desta situação.
É interessante referir que o próprio Niemeyer, no nosso encontro, tenha sublinhado que Lula, neste segundo mandato, está a ter uma evolução no sentido do progresso, da democracia e da soberania, e de solidariedade com os países da América Latina que convém acompanhar.
Portanto, não tendo resposta para a questão, em termos de desfecho, sentimos, pelo que pudemos observar, é que há uma evolução progressista mas num processo que não se esgota até ao final do actual mandato presidencial.

Não é estranho que o governo Lula, estando no segundo mandato, não tenha ainda tomado medidas de fundo em diversos sectores, como a criação de um sector público da comunicação social, ou de ter concretizado o que foi uma das suas mais fortes promessas, a distribuição da terra? É a correlação de forças que não o permite? É a falta de um movimento político organizado que dê sustentação ao governo?

Muito do que se passa, as medidas ou a falta delas, terá certamente a ver com a correlação de forças. O PT, o partido de Lula, tem apenas 17 por cento dos votos; há uma dispersão muito grande do eleitorado, com a agravante de que isto se verifica num quadro de desvalorização do papel dos partidos políticos. Às eleições concorrem pessoas, personalidades, não listas fechadas apoiadas pelos partidos. Tirando o PT, e mesmo este com muitas tendências, a força mais aglutinada é o PCdoB, que procura neste mar de contradições uma afirmação partidária, uma convergência e coesão dos seus eleitos. Como se compreende, neste contexto torna-se ainda mais difícil levar a cabo as medidas de fundo que, num sentido progressista, seriam desejáveis. Nesse sentido, quando falo numa encruzilhada, é porque considero que o processo tem de ter uma evolução.

Há quem afirme que os partidos comunistas não têm uma doutrina para a fase de transição do sistema capitalista para o sistema socialista. Tomando como exemplo o que se passa no Brasil, achas que este é um problema que se coloca aos partidos comunistas?

Creio que a questão da transição, ou das etapas, é uma questão central que leva a uma grande discussão no seio do próprio PCdoB. Nas duas conferências que fiz com militantes do partido, em S. Paulo e no Rio de Janeiro, um dos aspectos mais relevantes foi justamente a questão da política alternativa e da alternativa política. Há uma grande vontade em saber como é que o PCP se posiciona em relação a este aspecto, que envolve naturalmente os aspectos da transição. Creio que o PCdoB está muito empenhado na procura de soluções. É um partido que luta pelo socialismo, que considera que são necessárias etapas onde os trabalhadores tenham um papel determinante. Por exemplo, os comunistas do PCdoB e outros democratas que estão no movimento sindical romperam com a CUT e formaram uma nova central sindical de classe, que está a crescer e tem já um peso significativo, demonstrando assim que não se ficam pelas «inevitabilidades», antes dando com esta decisão importantíssima uma prova da sua autonomia e do seu objectivo de transformação social.

E muito provavelmente um destes dias estão a tomar posição contra medidas do governo em que se integram ministros do PCdoB...

Pode ser. O PCdoB não tem uma posição acrítica em relação às medidas que o governo de Lula toma. Está naturalmente numa posição de grande responsabilidade e de grande honestidade no governo, percebendo que é importante que este processo de democratização e de evolução social positiva, de afirmação da soberania, não só se mantenha como se aprofunde. Nesse sentido, há uma relação do PCdoB com o PT de grande seriedade mas sem perda da sua autonomia.

E não corre o risco de ficar refém do facto de estar no governo?

Nos encontros que tivemos, e designadamente nas conversações ao mais alto nível, os camaradas do PCdoB manifestaram uma clara vontade de preservar a sua autonomia, ao mesmo tempo que se empenham seriamente para que a evolução dos elementos positivos se aprofunde, ao contrário do PCB (Partido Comunista Brasileiro), com quem também nos encontrámos. Considera o PCB que não há espaço para períodos de transição, para os «etapismos», como dizem, e que estão a amadurecer as condições para a revolução socialista no Brasil, o que contraria a visão dialéctica que temos da transformação social para o nosso País e das etapas para uma democracia avançada.

A situação política existente no Brasil, à semelhança do que sucede noutros países da América Latina, como os casos da Venezuela, Equador, Bolívia, coloca novos desafios aos partidos comunistas. Como achas que vai ser a evolução política na região?

Eu diria que a América Latina é actualmente um gigantesco laboratório de experiências e evoluções sociais, políticas e ideológicas, que neste momento não têm ainda uma orientação definida. Sem dúvida que é de progresso; não é por acaso que assistimos à crescente preocupação do imperialismo com o que se passa na região. Não é de somenos para os EUA que o Brasil seja hoje um parceiro fraterno de Cuba...

...Mas entretanto os EUA entendem-se com o Brasil por causa da questão do etanol...

Sim, mas de qualquer forma é marcante o relacionamento com Cuba, bem como a existência de alguma articulação com outros países, como os que referiste, para encontrar resposta para as políticas económicas e até de articulação noutras áreas. Depois, coloca-se a questão de saber até onde se aprofundam as medidas de justiça social e de progresso nesses mesmos países. Por exemplo, no Brasil, durante a nossa estadia, foi afirmado que vão avançar com a lei fixando a jornada de trabalho, o que constitui um avanço histórico. Outro aspecto significativo é a paralisação do processo de privatizações. Convém também avaliar o posicionamento dos partidos da social-democracia, relativamente ao que sucede na Europa.

Em que sentido?

Em termos de uma visão de justiça social, por exemplo. Estamos a lidar aqui com uma social-democracia que se tem demarcado do neoliberalismo, ao contrário do que sucedeu na Europa.

A sensação que se tem, quando se olha para qualquer destes processos, é que estão todos ainda muito dependentes de personalidades. Onde estão as forças políticas que é suposto serem o suporte das transformações sociais?

Em relação a isso, bem poderemos reafirmar o que foi tese do nosso XVII Congresso: tendo em conta a evolução do mundo e a sua crescente complexidade, os partidos comunistas são mais necessários do que nunca. Independentemente da avaliação que possamos fazer da actuação própria do indivíduo, do democrata mais ou menos progressista, mais ou menos revolucionário, mesmo na situação da América latina, que com todas as suas contradições precisa de uma avaliação mais cuidada e rigorosa, o sentimento que temos é que são indispensáveis fortes partidos comunistas para fazer face aos desafios que se colocam.


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